O Piano Autista

Francisco Lacerda*, tornara-se um homem dividido.
Passava o dia a rondar a porta da vizinha, pois sentia-se na obrigação
de tentar pelo menos convida-la para um café, se possível no seu espaço de eleição,o café Guarani.
sendo um homem só, este encontro poderia restituir a auto-estima que há tantos anos tinha sido violentamente sonegada,quando Josefa dos Santos Caldas Antunes Lacerda*,decidiu por fim ao tormento que só ela sabia viver; vivia de ilusões, de imagens que nunca tinham existido.
Francisco, tornara-se um caçador da falecida esposa.Mulher difícil e caprichosa,que nos tempos aureos, satisfazia-se com nocturnos de bach e sonatas de Domenico Scarlatti, transportando-a para o classicismo confortável  da sua educação austera...
Francisco passara anos, implicando com o caustico egoísmo de Josefa,que 
se agarrava ao Piano Steinway, tal como se fosse um amante,o unico que ela sentia o conforto de se entregar qualquer hora, a qualquer minuto, dia e noite.
Ele sentia ciumes daquele objecto cintilante que povoava um canto da sala,
mas que inebriava o seu ego de homem semi-abandonado, carente e déspota
com o seu amor próprio...
Sentia-se traído, esquecido, mas ao mesmo tempo, seduzido pelos sons inquietantes que saiam daquele piano. tal como se fosse seduzido, não por palavras, mas sim por composições infinitas, interpretadas por uma mulher esquecida naquele mundo em que Josefa, habitava solitariamente.
Francisco, tem de tomar uma decisão; tem medo, tem vergonha;
Sente-se ultrapassado no tempo, com o seu casaco tweed, que vai persistindo
como o seu esconderijo mais fácil. Não é homem de arriscar; porque iria ele, tão destemido, tocar a campainha da vizinha, correndo o risco de não ser correspondido?
Medo; a terrível sensação de não saber o fim de uma advinha, ou se a seguir a uma curva, teremos um carro em contra-mão.
Para Francisco, torna-se uma obsessão, não saber qual o desfecho do seu desejo.
Será que ele próprio quer desejar um encontro, que poderá ser uma excelente coicidencia, ou a desilusão instantânea irá sobrecarregar a mágoa da sua existência solitária?
Sozinho, atravessa a porta; levanta o sobreolho tal tique de auto confiança.
ajusta o lenço que anteriormente, foi levemente perfumado com o Givenchy classic pour homme, e finalmente observa os sapatos de camurça, que cuidadosamente, escovou durante toda a manhã...
As portas frente a frente, são distancias demasiado longas, quando um arrepio na espinha, acompanha os passos indecisos e trémulos.
É paixão! é desejo! é mistério! - pensa Francisco euforicamente, lutando com 
a sua dúvida,o medo de ter de enfrentar o desconhecido.
para ele, será a oportunidade de mudança ; talvez pela primeira vez, oferecer flores a alguém que sinta o cheiro de margaridas frescas, de um abraço, nem que seja por breves minutos,por mero agradecimento.
Francisco quer aprender a amar, talvez tenha amado,talvez até um dia, tenha aceite a obsessão de Josefa, pois o sentimento dele era demasiado forte para não ir ao encontro do mundo dela.
Francisco, para em frente a porta lacada de branco, que transmite uma leve vibração;
parece que acústica do apartamento da Vizinha, é um sarcófago, isolado, onde a única coisa que trespassa para fora, é essa persistente vibração.
encosta-se a porta e fecha os olhos. O Voyeurismo que o assalta, leva-o a 
tentar perceber o que se passa por trás daquela porta.
Será música? Será um Piano? Será amor intenso com um amante perdido
em lencois de linho branco?
será choro? será solidão?
Francisco sente a vibração no anel de brasão, que transporta no seu anelar.
a tremura, torna-se evidente, e as suas dúvidas e medos, acompanham o tilintar da pedra safira do anel,alimentando as sua dúvida já perene.
Desiste, volta para trás e fecha a porta do seu apartamento, em violência e pânico súbito...
A vibração insistente na sua mão lembrou-lhe a ultima obra  que Josefa tocou;O lago do Cisnes.
A Vibração que sentiu, foi a mesma dessa noite em que Josefa faleceu.
quando a dança do acto III termina com o bailado do Cisne Negro, em que este decide a sorte do príncipe e da sua amada Odette.Enfeitiçado por Odile, Siegfried proclama que escolheu como sua bela futura esposa, quebrando assim o juramento feito a Odette.
Franscisco, também quebrou o juramento de eternidade a Josefa nos braços dele, naquela noite de chuva persistente e ruidosa...
O Amor dele poderá ser eternamente uma dúvida consciente,mas irá para sempre recordar que talvez nunca soube destingui-la do cisne branco...





*Nomes Ficticios


Mito 2012